Lembro quando o extinto Toque no Altar lançou o álbum “Trazendo a arca” lá no início dos anos 2000. Foi um sucesso absurdo e praticamente todas as faixas chegaram às igrejas. Dentre elas, “Deus de promessas” do Davi Sacer foi provavelmente a que mais estourou. A faixa, inclusive, foi regravada pelo cantor há pouco tempo com participação da cantora Simone, da dupla sertaneja Simone e Simaria, num álbum de comemoração de quinze anos do lançamento daquele primeiro CD (da época em que ainda ouvíamos CDs).
Vamos olhar mais de perto, então, a sua letra.
A música é escrita principalmente na primeira pessoa do singular, apesar do refrão focar no “Deus de promessas”, como diz o título. Gramaticalmente, o foco da música é dividido entre nós e Deus, mas como um todo, é uma música muito mais voltada para o homem do que de exaltação de Deus, propriamente dito.
“Sei que os teus olhos sempre atentos permanecem em mim,
E os teus ouvidos estão sensíveis para ouvir o meu clamor…”
Essa frase espelha o Salmo 34:15, que diz: “Os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus ouvidos estão abertos ao seu clamor.” Há, porém, uma sutil diferença: o salmista fala dos justos, não de si mesmo individualmente. Ele fala de um Deus que está atento ao seu povo, não apenas uma única pessoa. A Bíblia afirma em alguns trechos diferentes que os olhos de Deus estão sobre todos e em toda parte (Hb 4:13; Pv 15:3; 2 Cr 16:9).
Tendo dito isso, a frase em si não é problemática, mas ela certamente dita o tom do resto da música.
A letra segue fazendo afirmações avulsas a respeito de Deus, mas sem um fio condutor teológico aparente. O tema central segue sendo o quanto Deus está focado em nós. Aliás, até tem uma frase que está errada, logo na primeira estrofe:
“És Deus de perto, e não de longe”
Mas em Jeremias 23:23, lemos:
“- Sou eu Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não também Deus de longe?” (grifo meu)
Então, novamente, até haja frases que de fato estão na Bíblia, são usadas para expressar uma imagem centrada mais no homem do que em Deus.
Mas Deus não é um Deus de Alianças? Ele não faz promessas?
Certamente as faz! Aliás, o Aliancismo ou Teologia Pactual é um dos pontos centrais da teologia reformada. Mas não é qualquer Aliança, nem qualquer promessa. E é nessa falta de definição dos conceitos que a música peca.
Quando falamos das promessas de Deus para nós, aquelas que devem nos trazer esperança, temos que nos ater à Palavra de Deus, que é infalível. Essas são dignas da nossa absoluta confiança. Por outro lado, é certamente possível que Deus faça promessas a nós hoje, mas essas não devem ser tidas como infalíveis, uma vez que nosso coração é enganoso. É possível ouvirmos de Deus, mas também é possível que erremos na nossa percepção do que ouvimos. Por isso, qualquer promessa que recebamos hoje deve ser submetida ao teste do tempo e da coerência com as Escrituras.
Uma das tendências do meio pentecostal, tradição dentro da qual a música mais fez sucesso, é uma ênfase exagerada nos dons espirituais. E por mais que haja irmãos que creem na continuidade dos dons, não podemos tomar qualquer palavra de ciência, profecia ou promessa de Deus como infalível. Somente a Palavra de Deus, conforme registrada nas Escrituras, é digna dessa reverência.
Então, quando a música fala de promessas, ela não as submete a crivo algum, não faz referência a certezas bíblicas e deixa a cargo de quem canta a responsabilidade de preencher na sua imaginação a promessa que for. Nisso, é uma música problemática para o culto, pois dá a entender que por Deus ser um Deus de Alianças e promessas, Ele está necessariamente comprometido em atender todos os nossos desejos e anseios, fazendo até mesmo o impossível acontecer (como diz na ponte da música):
“Meus olhos vão ver o impossível acontecer”
Novamente, com uma ênfase não na ação e vontade de Deus, mas numa afirmação do que eu verei.
Não acho que essa música seja inadequada para todo e qualquer questão. Creio que há pessoas que são disciplinadas na sua devoção e maduras na fé que possam estar passando por um momento desafiador, e que para elas, naquele momento, esta música possa servir de oração. Porém, pelo tom triunfalista e a falta de especificidade bíblica, não creio que seja uma música adequada para o culto congregacional.