A música “Ousado amor” é uma das mais populares dos últimos anos. A original em inglês, “Reckless Love”, foi composta por Cory Asbury, membro da Bethel Music. Por aqui, ficou mais conhecida na voz do Isaias Saad.
A mensagem central da música é uma exaltação do amor de Deus, que não mede esforços para expressá-lo a nós. Ao longo da música, o autor coloca vários aspectos ou características do amor de Deus.
É uma bela canção e não chega a cometer erros doutrinários, mas ela peca em um aspecto crucial. Vamos olhar por partes.
Logo nas primeiras linhas, ela apresenta alguns conceitos interessantes:
“Antes de eu falar, tu cantavas sobre mim…
Antes de eu respirar, sopraste Tua vida em mim…”
Essas duas frases parecem não dizer tanta coisa assim, mas expressam algumas profundas verdades teológicas e doutrinarias. Devemos perguntar o seguinte: quem é que pode cantar esta música? Afinal, sobre quem que Deus cantava e soprava antes de mesmo de ter nascido?
Este é um conceito que se encaixa perfeitamente na doutrina da predestinação, a noção de que Deus escolhe quem lhe pertence, quem são os seus salvos. Aos seus, Ele deu vida antes mesmo de nascerem, conforme diz em Efésios 1:4.
Para um calvinista, não haveria problema algum em cantar isso. Mas será que um arminiano convicto poderia cantar esses versos com a mesma convicção? E é aqui que a música começa a mostrar seus problemas.
Quando o autor compôs esta canção, ele tinha algo em mente, uma visão de Deus específica. Será que esta visão é clara para todos que a cantam? Ele usa imagens de termos que têm mais de um significado possível. Daí, cabe a quem canta atribuir o significado que lhe parecer melhor.
Essa falta de especificidade nos conceitos empregados pode ser algo sutil e não tão grave assim, como no exemplo citado acima (se bem que isso pode ser um desafio maior para o arminiano do que para o calvinista). Mas quando chega no refrão, nos deparamos com um problema de interpretação na escolha do termo “ousado”.
Primeiro, a Bíblia não usa esse termo para descrever Deus. Ele nunca é descrito como sendo ousado. Segundo, o termo tem alguns significados e conotações diferentes. Será que todas eles podem ser atribuídos a Deus?
Numa rápida busca do Google, alguns significados e sinônimos saltam aos olhos. “Ousado” pode significar alguém “que não demonstra o devido respeito pelos outros; atrevido, insolente, malcriado”. Num uso mais cotidiano da palavra, chamamos de ousada a pessoa age de maneira sem vergonha. Por exemplo, se eu digo que um homem foi ousado com uma mulher, qual é o significado que vem à mente? E neste sentido, é certo chamar Deus de sem vergonha?
Por outro lado, também vemos que o termo pode significar agir com coragem, intrepidez e valentia. Sim, o termo também carrega esse significado, que é mais coerente com uma visão correta de Deus.
O problema é: quando alguém ouvir ou cantar essa música, qual é o sentido que ela terá em mente?
O papel do pastor ou líder de música é ensinar pessoas a como se relacionar com Deus. A linguagem usada nas nossas músicas tem um papel pedagógico. Estamos literalmente dando voz à devoção dos discípulos de Cristo, colocando palavras na sua boca, que serão usadas para falar com Deus. Então, temos a responsabilidade de escolher palavras que são fundamentadas na Palavra e que expressam uma visão clara e apropriada a cerca de quem Deus é e como Ele quer que nos relacionemos com Ele. E neste aspecto, a música não faz um bom trabalho.
Não tenho dúvidas de que o autor atribuiu um significado positivo a essas palavras. Creio que suas intenções foram nobres. Se não me engano, esta música nasceu de um momento de sofrimento e angústia pessoal em que o Asbury foi lembrado justamente do tamanho do amor de Deus por ele, e isso é maravilhoso. Mas, infelizmente, os termos utilizados exigem que quem a ouve e canta estejam muito bem fundamentados nas suas convicções teológicas para evitar compreender Deus de maneira errada.
Há diversas músicas que fazem um bom trabalho de expressar o amor de Deus por nós, com uma linguagem mais conservadora e bíblica. A música “Quebrantado” (Vineyard) diz que “Impressionante é o Teu amor que me redimiu e me comprou, pois Tu és fiel”. Um outro hino antigo, “Eis o amor, vasto oceano”, afirma que “sobre o monte do Calvário larga fonte se abriu. Mar de graça e piedade dos portões de Deus fluiu. Graça e amor, qual vasto rio, flui do alto sem cessar”.
Não temos que evitar a música “Ousado amor” a qualquer custo. Afinal, ela não contém erros graves ou heresias. Mas, lhe falta um maior cuidado doutrinário. É uma música que pode fazer parte de um momento devocional pessoal, de um grupo menor onde haja a devida instrução. Porém, quando consideramos um culto público em que qualquer pessoa possa estar presente, não cremos que seja recomendável cantá-la. Há diversas outras opções disponíveis para falar do amor de Deus por nós, de maneira clara e bíblica.