A música “Senhor, te quero” é uma tradução da música “In the secret”, de Andy Park. Nos Estados Unidos, foi grava da por uma série de artistas diferentes. Por aqui, ela foi gravada por artistas como David Quinlan e a igreja Vineyard. Algumas gravações, inclusive, levaram o nome “Eu te busco”.
Essa é uma daquelas músicas que marcou época, principalmente entre os jovens. Quantos aqui, como eu, não cantaram isso a plenos pulmões numa reunião de jovens, retiro ou roda de violão?
Por se tratar de uma tradução, a comparação com a original é quase inevitável. Mas, vamos focar somente na versão em português para a nossa análise. Afinal, é ela que cantamos por aqui.
Desde já, é necessário pontuar o seguinte: toda tradução é uma traição. Esta máxima é bem conhecida por tradutores. Afinal, é quase impossível que haja palavras e expressões de significado correspondente em duas línguas diferentes. O trabalho do tradutor é tentar expressar o significado da língua original da maneira mais fiel possível, buscando as palavras de outra línguas que mais se assemelham ou expressam o significado de origem. E isso nem sempre dá certo.
Agora, se isso já é complexo com tradução em geral, imagine acrescentar o desafio de traduzir e encaixar os termos e significados na métrica de uma canção.
Tudo isso para dizer: a original serve de inspiração para a tradução. Apesar das semelhanças entre as versões (e não traduções), há algumas diferenças bem relevantes. Pessoalmente, eu gosto da original em inglês. Mas a sua versão em português realmente não ficou lá essas coisas.
A primeira estrofe fala da busca do homem por Deus, da esperança de receber uma revelação de Deus. Poderíamos ser muito implicantes com cada frase da música, mas prefiro trabalhar com o sentido geral de cada bloco. Aqui, temos a expressão de um desejo legítimo de ouvir de Deus, de esperar um encontro pessoal com Ele. Sim, isso também inclui a leitura da Palavra. Mas Deus também fala a nós diretamente, sem contrariar ou acrescentar às Escrituras.
Essa primeira estrofe tem uma frase um tanto cômica, a meu ver. “No silêncio tu estás” no meio de uma música que geralmente é tocada com um groove bem acelerado e com bastante distorção de guitarra. Não é nesse sentido que a letra fala, pois obviamente está se referindo à solitude e quietude, que é diferente de dizer que Deus está num ambiente sem som algum. Tendo dito isso, confesso que ainda dou uma risadinha com esse verso.
No refrão, a letra fala do desejo de ver, tocar, ouvir a voz de Deus, de querer mais dEle. Novamente, poderíamos encrencar com questões teológicas como a impossibilidade do homem ver fisicamente a face de Deus. Em êxodo 33:22,23, Moisés tem que se esconder na fenda de uma rocha para não ver a glória de Deus passar, e Deus diz que ninguém pode ver a sua face.
Então, é legítimo pedir para ver a face de Deus? Novamente, o desejo é de literalmente ver o rosto de Deus? Creio que é mais do que isso. A música expressa um anseio sincero de ter e sentir uma maior presença de Deus. E neste sentido, o desejo não é errado. Só não acho que essa seja a melhor maneira de expressá-la.
Há outras belíssimas músicas que usam a mesma expressão, como “Senhor, formoso és, tua face eu quero ver”. São músicas que falam sobre a beleza e o prazer da presença sentida de Deus. E é válido cultivar este anseio.
Seguindo para a segunda estrofe, a música descreve o ímpeto de correr atrás da coroa, de lutar, de não deixar que nada impeça ou apague o desejo de seguir a Deus. Sei que estou soando repetitivo, mas novamente, o desejo é sincero e legítimo. Já a expressão dele realmente não é das melhores.
Ninguém conquista a coroa. Paulo fala em 2 Timóteo de combater o bom combate, correr a corrida, de guardar a fé, mas isso é diferente de conquistar, de merecer. Mesmo que a imagem de um soldado e de um corredor nos leve a pensar em vitória, luta e conquista, Paulo não afirma que ele consegue fazer isso. Neste sentido, a imagem do lavrador que guarda e cultiva e semente faz muito mais sentido. O trabalho do soldado é obedecer as ordens que recebe de outro. O do corredor é completar a corrida e cruzar a linha de chegada, mesmo que não seja em primeiro lugar.
Nosso trabalho e esforço é o de perseverar naquilo que Deus propõe para nós, confiando que Ele é fiel para cumprir as suas promessas, de nos entregar a coroa que Ele nos dá, por misericórdia dele, não por mérito nosso.
Creio que devemos, sim, lutar e insistir na nossa busca por Deus. Mas não é pela força do nosso braço que conquistamos o que quer que seja.
A música expressa um sentimento legítimo e que tem seu mérito, mas a forma como ela o expressa não é das melhores. Os termos e imagens usados não são coerentes com a mensagem bíblica. Neste sentido, a original é muito mais feliz na expressão de uma devoção ativa e uma busca intensa pela presença e comunhão com Deus.
Apesar da música não pregar falsas doutrinas ou heresias, propriamente dito, não creio que deva ser cantada na igreja, por melhor que seja a intenção por trás dela.
Se você sabe inglês, recomendo ouvir “In the secret” em sua versão original. Indico a versão do Shane and Shane, do álbum “Vintage”.